O MOURO



Usa brincos, pequenas argolas de ouro fino. O cabelo negro, denso, está sempre amarrado em rabo-de-cavalo. Traz a origem mediterrânea na pele, nos olhos, amendoados, de cílios enormes, e no nariz, semita. Os lábios são finos e o maxilar quadrado confere-lhe uma beleza viril, impressionante. Uma cicatriz enorme vaza-lhe a face esquerda. Profunda. Mexe-se com leveza e seus passos são silenciosos, assustando as pessoas ao se depararem com ele, como se surgido do nada. Às costas carrega uma mochila enorme onde guarda suas mercadorias. Mascate por profissão, mas artista na alma, confecciona jóias de pedra e marfim além de comprar tecido e essências de uma região para vender em outra. De sua vida pessoal ninguém sabe. Aparece na vila de mês em mês, e com sua voz rouca vai apregoando pelas ruas o que traz para vender. As mulheres são sempre as primeiras a correr, nem sempre pelos tecidos, bijuterias ou perfumes, mas sim para vê-lo, chegar bem perto, sentir o seu cheiro de homem, de animal. Ele percebe essa dança feminina sensual ao seu redor, porém todo o cuidado é pouco, uma vez que os homens, sempre zelosos de suas mulheres, podem se tomar de ciúmes e ele não quer confusão para o seu lado.
Chamam-no o Mouro, e deve estar beirando os 40 anos.
Naquele dia, ele chega cedo à aldeia. Todos dormem e, por alguns minutos, ele tem como companhia apenas os cachorros errantes. Fica por ali, zanzando pelas ruas sonolentas, fumando seu cigarro de palha até que a padaria local abra suas portas. Dirige-se para lá, está faminto, e o cheiro do pão, gostoso e inebriante, penetra-lhe pelas narinas, aguça sua fome. E é nesse momento que a vê. Morena, cabelos castanhos, longos, arrumados numa trança sem fim, leva nos braços uma criança de dois anos. Como faz um pouco de frio, estão enroladas numa manta de lã fina, colorida. Seu passo forte ecoa no asfalto úmido da aldeia e também ela se dirige à padaria. Seus olhos se cruzam rapidamente e ambos entram quase juntos. O Mouro cumprimenta o dono do local com um aceno de cabeça e vai se sentar a uma mesa no fundo, não sem antes pedir um café bem forte e alguns pães. Enquanto espera, olha Mirela, de soslaio. Nossa, como é bonita! Não se lembra de tê-la visto antes. Além dos pães, Mirela pede leite e farinha. Ele bem que se esforça, mas não lhe escuta a voz. Ela paga, olha em volta, vê o Mouro, os olhares se cruzam, ela não sustenta a força daquele olhar, e vai-se embora, deixando no ambiente um leve aroma de jasmim. O Mouro fica ainda um pouco na loja. Sorve o seu café, prazerosamente, e se prepara para o trabalho do dia. Traz, além das coisas habituais, doces de nozes e damascos, muito apreciados por essas vizinhanças. E muitos batons também, atendendo especialmente aos pedidos das mulheres.
O dia amanhece nublado. Um vento frio corta o ar. O Mouro vai para uma esquina paralela ao mercado popular e ali estende o seu tapete. Arruma a mercadoria com esmero. Imerso em seus pensamentos, não percebe a chuva fina que cái. De repente, uma tromba d’água desce dos céus em fúria e ele corre a se abrigar, levando as mercadorias embrulhadas de qualquer maneira no tapete. O ponto mais próximo é o mercado, vazio àquela hora. Absorto em seus pensamentos, não se dá conta que a chuva cessa e que o sol timidamente surge entre nuvens, agora não tão escuras. Vindo do nada, um cheiro de jasmin no ar. Atordoado, por uns instantes, como a se recordar de alguma coisa, tem o seu sentido atraído por um vulto esguio, que passa pela sua frente, com um leve farfalhar de tecido. Antes de vê-la por completo, já sabe que é Mirela. Mirela, alheia ao encanto que desperta no homem, entra no mercado e compra o trivial: arroz, grãos, mel, café e algumas frutas. Encontra uma amiga e, por um tempo, sussurram algumas palavras, olham para o homem encostado á parede e se despedem com beijos.
Há pouco tempo no vilarejo, Mirela já tinha ouvido falar do Mouro. Também já o tinha visto, mas foi hoje que o viu de perto, pela primeira vez.
Não teve dúvida de que era realmente um homem bastante atraente, atraente até demais.
O Mouro sai do mercado e vai para o seu ponto de costume, esperar a freguesia. Mirela também vai para a rua. Por um momento, olha para o céu, como a se certificar que a chuva parou realmente e se dirige para a esquina onde está o Mouro. Passa pelas belezuras espalhadas no tapete, se detém por um momento, deixando seus olhos descansarem num xale vermelho com detalhes dourados. Mirela sabe que o homem não lhe tira os olhos de cima, e aproveita cada segundo dessa sedução. Experimenta o xale, o tecido escorrega pelos ombros, e leva um susto quando se vê refletida num espelho que o Mouro segura. Sorri encabulada. Ele acende um cigarro. Ela pergunta o preço. É precioso aquele tempo. Ele diz que se ela gostou, pode levar. Presente. Mirela enrubesce face àqueles olhos negros, deslumbrantes e cheios de significados, dá um passo para trás, agradece, coloca o xale sobre os ombros e sai rapidamente. As mulheres da aldeia chegam e, com suas risadas alegres, desanuviam o ambiente. Chegam também os homens, proseiam um pouco, vigiam discretamente suas mulheres e, ao fim do dia, exausto, o Mouro vai se reunir com seus parceiros de sinuca, para uma partida na adega do Jorge, regada a vinho e alguns petiscos. Pernoita na cidade, porque no dia seguinte será o casamento de Laila e Gedeão, amigos de longa data.
No dia seguinte, a cidade acorda em ritmo frnético. Os sinos badalam, acordando os que ainda insistem em dormir. Seus habitantes se dirigem à praça principal, levando pães, lingüiças e tonéis de café preto, forte. Todos acorrem para o desjejum, e, logo depois, começam os preparativos para a festança. Os homens armam uma grande mesa para o banquete, e as mulheres a enfeitam. Trazem uma bela toalha branca, com rendas e laços de tafetá, e vão ornando a mesa, com cuidado, escondendo todas as falhas da madeira. Alvos guardanapos e talheres impecavelmente brilhando vão sendo arrumados lado a lado. A louça bem antiga, e bela, pertenceu ao casamento da avó de Laila e apenas nessas ocasiões é posta em uso. As crianças trazem flores, que também vão sendo presas nos laços de tafetá, dando uma dignidade e classe virginal ao acabamento da mesa nupcial. Para o farto ágape, leitões são trazidos em grandes pratos em vinha d’alho e são postos a assar na grande fogueira armada pelos homens, próxima à grande figueira da praça. Os cheiros exalam de forma admirável. Maíra e Talita são as encarregadas dos doces. Esmeram-se as duas no preparo dos caramelizados, os favoritos do pessoal. Tudo traz água na boca. Tâmaras, nozes, damascos em calda queimada seduzem os sentidos. Tudo é um convite ao mais puro prazer. O bolo, monumental, foi feito de véspera. Todo branco, com recheio de ambrosia. Uma delícia dos deuses!
As mulheres são as mais animadas. São elas que comandam aquele enorme contingente de homens e crianças, todos ansiosos em ajudar a abrilhantar o enlace de duas pessoas tão queridas como os noivos.
Quase tudo pronto, só falta armar a tenda que cobrirá a mesa toda, em caso de chuva. Alguns casais tomam o caminho de casa para um breve descanso, banho e troca de roupa. Todos querem estar bonitos e limpos para o tão esperado enlace. O Mouro ainda fica um tempo ali, talvez na esperança de ver Mirela, que não aparece.
Por volta das duas da tarde a praça está cheia. Todos os amigos estão lá. Tudo pronto para o casamento. O noivo, aflito, espera pela noiva, atrasada, olhando o relógio várias vezes. O juiz a postos. Amigos brindam. Um som de violinos é ouvido ao longe. Virando a esquina um quarteto de jovens violinistas surge tocando, e a balbúrdia, como num passe de mágica, para. Fogos espocam e Laila surge angelical como só as noivas conseguem ser, de branco e flor nos cabelos. O vestido de renda branca, decote canoa, mangas compridas, justo no corpo e evasée da cintura para baixo, alonga sua silhueta delgada, conferindo-lhe um porte de rainha. Os sapatos, também brancos, são baixos. A maquiagem discreta ressalta o que nela há de mais belo: seus profundos olhos verdes contrastando com os negros cabelos, sobrancelhas espessas e boca rosada. Quando chega ao meio da praça, as pessoas já gritam e aplaudem. As senhoras mais velhas choram discretamente. E é nesse momento que o Mouro vê Mirela saindo de casa. Fica transtornado.
O juiz inicia a cerimônia no palanque improvisado, rés ao chão. Testemunhas assinam o livro nupcial e, encerrada a cerimônia, os noivos se dirigem à mesa para iniciar o banquete.
Mirela se senta em frente ao Mouro, o único lugar vazio na grande mesa. Ciente da presença dele, não sabe onde colocar as mãos, ou para onde olhar. Ao se acomodar, sente uma descarga elétrica passar pelo seu corpo. Ela se mexe na cadeira, desconfortável, e levanta os olhos para ele, tentando disfarçar. Dá-se com um par de olhos negros e profundos pousados nos dela, como a querer advinhar o que lhe passa pela mente. Num misto de vergonha, abaixa-os de novo, mas a força daquela olhar é tão forte, que ela, num ímpeto, levanta a cabeça e o encara, de frente. Ele não espera tal coragem, as mulheres daquele lugar são recatadas, mas aprecia o gesto. Mal sabe ele, que por dentro Mirela treme e medra.
O almoço transcorre em pura tensão. O Mouro avalia a mulher, emite sinais silenciosos que só os apaixonados entendem e decifram. Ela sabe o quanto ele lhe deseja. Também ela o deseja. Há tanto tempo não se interessa por alguém. Tem um filho e apesar da curiosidade da vizinhança, nunca falou de sua vida, e depois de um tempo desistiram de perguntar. Gostavam dela. Era uma mulher séria, trabalhadora e que não se metia na vida de ninguém e nem se insinuava para os homens casados.
Todos comem , menos os dois. A vontade vem ao mesmo tempo. Ao se servir da carne, suas mãos chegam juntas a travessa. Os dedos se roçam, ela os retira, rapidamente, e gentilmente, ele lhe oferece a vez. Sorri e ela, ainda com certo receio, sorri de volta, timidamente, e se serve de um pedaço pequeno. A excitação tira-lhe a fome. O mesmo não acontece com ele. Serve-se com prazer e ao trincar a carne para levá-la a boca sente que, dessa vez, são os olhos dela que o acompanham. Sorri de novo, sem encará-la. A vez agora é dela. Ela o prescruta. Vê todos os detalhes de seu rosto viril. Comem e bebem. O Mouro deixa o garfo cair, abaixa-se para pegá-lo e demora alguns segundos para voltar. O fato dele estar debaixo da mesa, mexe com a imaginação da mulher. Tem um leve estremecer, torce para que ele volte rápido. Ajeita o vestido e espera. Ele volta à mesa com o garfo na mão e não olha para ela.
Mirela procura pela garrafa de vinho. O Mouro se adianta e lhe serve. Ela agradece com um menear de cabeça e sorve lentamente o precioso líquido. Limpa a boca com o guardanapo e olha para ele. Ele está transtornado. Qualquer movimento de Mirela detona nele um desejo, uma vontade louca de abraçá-la, beijá-la, de tê-la só para si. Ele se impacienta, a dor latejando subindo pela virilha, tomando corpo, incomodando-o.
Num certo momento, Mirela se levanta ao ver o filho nos braços de Ana, sua irmã, chegando à praça. O Mouro se deixa ficar ainda por uns dez minutos e vai atrás dela. Num canto afastado da praça, longe da multidão e onde não podiam ser vistos, Mirela espera por ele. O Mouro para em frente a ela, faz um movimento de cabeça, imperceptível como a pedir que o siga. Ela obedece, entram no hotel onde ele está hospedado e, sem que ninguém os veja, sobem rapidamente para o quarto dele.
Quando se vêem a sós, entregam-se sem pudor. Ele lhe tira a roupa com delicadeza, Para cada peça tirada, um beijo ardente. Deita-a na cama e a cobre com seu corpo. Ele é só prazer, ela emoção, os corpos se contorcem, gemem e ela sorri, emocionada. Ele a penetra com cuidado. Ambos estão ferfendo, a dança se intensifica, os ventres suados, ora se encontram ora se afastam. Uma onda inebriante os estrangula e os dois gozam juntos. Abraçam-se por um tempo, silenciosos, levantam-se e começam a se vestir. Nenhuma palavra é trocada. Voltam para a festa, comem e bebem, dessa vez tem fome.
Tarde da noite, todos se recolhem às suas casas. E o Mouro deixa a cidade.

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