DONA ANGÉLICA


A diversão de dona Angélica é ficar na varanda de seu apartamento olhando o movimento da rua. Estranhou quando viu a papelaria do Fernando fechar mais cedo do que o de costume.

A papelaria fica em frente à sua janela. Fernando, o dono, todas às vezes que chega, costuma lhe dar um adeusinho. Ela retribui a gentileza com mimos culinários. Todas as tardes, a empregada atravessa a rua com uma bandeja com café e bolo. E assim, solidificaram uma amizade à distância. Naquele dia algo acontecera. O relógio mostrava as 16 horas e a papelaria já estava fechada. Pegou o telefone e telefonou para lá. Ninguém respondeu. Ficou aflita.

No dia seguinte, a manicure chegou pontualmente às 9 horas. Entrou e foi logo dizendo.

- A senhora soube que a papelaria foi assaltada ontem? Um homem armado mobilizou o Fernando e a Cristina e roubou tudo. Até o pobre do Daniel (o faxineiro do prédio ao lado) foi feito refém. O bandido mandou o Fernando arriar um pouco a porta, depois amarrou os três, fez a festa e saiu calmamente. Quem percebeu que alguma coisa estava errada foi a Sandra, a mulher do Daniel, que chegou do supermercado, procurou pelo marido, não viu e foi na papelaria saber dele. Porque o Daniel quando não está no prédio trabalhando, está de conversa com o Fernandoe, ele faz limpeza na loja, sabia?

- Ah, eu bem que desconfiei que algo tinha acontecido, falou dona Angélica. Coitados, devem ter ficado assustadíssimos. A gente não tem mais sossego nessa cidade.

Depois que a manicure saiu, dona Angélica preparou um prato de sobremesa com algumas fatias de bolo de laranja, pegou o elevador, atravessou a rua e entrou na papelaria. Foi prestar solidariedade ao comerciante amigo. Era o quarto assalto aos pequenos comerciantes da rua num intervalo de seis meses. Estava horrorizada com a sua cidade. Tinha 95 anos e nunca vira tanta violência: assaltos, roubos a residências, balas perdidas fazendo vítimas fatais, homicídios, ônibus incendiados, favelas em pé de guerra, enfim o caos. Muita gente morrendo diariamente, e o governador se dividindo em dois para comparecer a tantos funerais, sem que isso viesse a atrapalhar suas viagens internacionais, era vidrado por Paris. Quando calhava de ser no mesmo dia de seu voo inernacional mandava o vice, que na verdade, era quem governava a cidade.

- Já imaginou se o assaltante da papelaria resolve sair atirando pra todos os lados? Eu podia ter sido uma vítima de bala perdida. Não vou mais ficar na janela. Vou mudar meus hábitos. Ah, não quero morrer desse jeito, ponderou, tomando café que Cristina trouxe para comerem com o bolo.

Acordou com o barulho intenso no corredor, inusitado pelo avançado na hora, onde todos dormiam há um bom tempo.

- Seriam os novos vizinhos?

Dona Angélica ouviu gritos. Achou que ouviu. Na sua idade não podia ter tanta certeza. O ouvido não era mais o mesmo. Mas mesmo assim ligou para o porteiro.

- Paulinho, meu filho, estou ouvindo um barulho bem estranho aqui no corredor, ninguém ligou reclamando?

- Por enquanto só a senhora. Vou pedir ao vigia para verificar.

O gato, Miau, estava inquieto. Gatos são sensíveis. Dona Angélica ficou com medo.

- Vou parar de ler os jornais. As notícias assustam tanto, que a gente vê perigo em toda a parte. Veja só, estou morta de medo por causa de um barulhinho à toa, falou, se dirigindo a Miau. Vou ligar a televisão pra me distrair.

Distraiu-se com a televisão e adormeceu no sofá.

Foi acordada cedo por Etelvina trazendo a bandeja com o café da manhã que deu a notícia que o apartamento ao lado do dela tinha sido assaltado. Mas não foi assalto comum, coisa encomendada.

- Como, Etelvina?

- Pois é, dona Angélica, o caso está meio nebuloso. Mariangeles, a empregada do 501, estava na portaria esperando o namorado. Aí entraram dois homens lindões, bem vestidos, e ela jura que eles não moram aqui, mas foram entrando como se fossem moradores. O Paulinho nem tentou impedi-los. Vai ver que ficou com vergonha de perguntar. Porteiro só pede identificação se o visitante tem cara de pobre ou é negro. A empregada e os donos da casa foram amordaçados e amarrados aos pés da mesa e os caras roubaram o que puderam; Só quando o filho chegou da naite é que a polícia foi avisada.

- Cruzes, Etelvina, que perigo, bem que eu pressenti que algo estranho estava acontecendo bem embaixo do meu nariz, nesse caso, na casa ao lado. Ai meu deus do céu, não tem mais jeito.

Comprou um binóculo, instalou alarme nas portas, e foi se pegar com promessas e rezas ao santo de sua devoção- Oxóssi. Morreu sem nunca ter sido assaltada. Coisas de Oxóssi, sem dúvida alguma.



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