AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

                                               

            A festa, na cobertura de um ricaço fervilhava; mulheres e homens bonitos, políticos, juízes, artistas, música ao vivo, e eu, sem muito saber o que fazia ali. Com quem eu vim? me perguntava, pois não conhecia absolutamente ninguém. Servia-me de uma taça de champanhe e me surpreendi com a moça bonita que se acercou sorrindo e brindou comigo. Enquanto nossos olhos flertavam, as taças se roçaram fazendo um ruído que começou mínimo e foi crescendo até se tornar insuportável. Tampei os ouvidos com as mãos e gritei o mais alto que pude.  Acordei de súbito, com o celular tocando insistentemente. O porteiro do prédio do meu tio, que eu não via há séculos, pedindo minha presença urgente porque achava que alguma coisa tinha acontecido com o velho.
            Vesti-me com má vontade, tomei um café forte para espantar o sono, e segui para o Flamengo. No caminho, fui me lembrando desse tio, o único vivo da minha pequena família, irmão mais novo de meu pai.  Era pessoa que nunca mereceu nenhuma consideração. Dos muitos defeitos a avareza foi notória, negando-se a ajudar a família, nas poucas vezes que meu pai precisou e pediu. Presença obrigatória nos almoços de domingo, nos meus primeiros dez anos de vida, sua presença foi se rareando na medida em que minha mãe se encheu dele, devido aos seus comentários grosseiros a respeito de qualquer coisa, da sua impontualidade recorrente e da falta de delicadeza com o pessoal de casa. Não me lembro de ter ganhado nada dele, nem em aniversário, Páscoa ou mesmo Natal. Mas, minha mãe sempre usou a lei da reciprocidade. Não dava, não ganhava.
            Cheguei, ainda sonolento,  maldizendo o parentesco. O porteiro me acompanhou até o apartamento e abriu a porta. O fedor que saiu de lá de dentro quase me derrubou. Nauseado, balancei nas pernas e fiquei na dúvida se entrava ou não. Olhei para o empregado que, estoicamente continuava de pé, e avancei alguns metros. Parei no meio da sala não acreditando no que via. Paredes e tetos cobertos de uma sujeira impressionante. Papéis picados, jogados no chão, comida, fezes de rato, baratas, teias de aranha formavam um tapete nojento e deprimente. Lustres empoeirados, poeira densa em cima dos moveis, sofás e poltronas com forros rasgados, nunca vi lugar assim. Mas o pior era o cheiro. Cheiro de carne humana podre, o cheiro da falta de asseio, cheiro de coco, urina, como pode alguém viver assim? Meu tio chegou ao fim do poço. Não sei como não pegou doença contagiosa. Tirei um lenço do bolso e tampei o meu nariz. No quarto, uma figura esquálida, fedendo tanto quanto a casa, deitado em cima de lençóis enegrecidos e encharcados dos detritos que saíam de dentro dele, nem se deu conta da nossa presença. Liguei para a ambulância e  fiquei pensando em que providências tomar.           
            Luzia foi a mulher com quem viveu por duas décadas. Vi-a poucas vezes. Era alta, morena, e muito delicada. Ele a conheceu quando já não frequentava a nossa casa, mas a levou  um dia para que a conhecêssemos. Deixou-nos uma ótima impressão, porém mamãe não fez o mínimo esforço para estreitar o relacionamento. Meu pai se absteve, e o tio compreendeu. Levamos um susto quando soubemos de sua morte. Apenas meu pai foi ao enterro. E a última vez que o vi foi no enterro dos meus pais. Portanto já havia muito tempo, na minha cabeça uma eternidade. Quando se perde os pais, a dimensão do tempo muda.
            Consegui uma força tarefa e no dia seguinte, três mulheres começaram a faxina. Caixa e mais caixas de lixo saíam do apartamento diariamente. Todas trabalhavam de máscaras, botas e luvas. O apartamento estava infecto. Essa limpeza durou algumas semanas.
            Meu tio ficou internado uma semana. Estava desidratado, anêmico, e a estadia no hospital foi essencial para a sua recuperação.
            Com o velho no hospital, resolvi me empenhar na limpeza do apartamento, que na morte dele, passaria para mim, o único herdeiro. Como são as coisas. Ele passou a vida sem me dar um único presente, negou ajuda quando meu pai, fragilizado pela saúde mais precisou e agora estava tudo em minhas mãos. Cartão de banco, cartão de crédito, carro na garagem, o que adiantou ser tão avaro? O velho tinha dinheiro e não tive pudor de gastar. Faria-o gastar tostão por tostão por todos aqueles anos em que precisamos tanto de sua ajuda, e ele, arrogante, imprestável, foi incapaz de estender a mão e ajudar a seu único irmão.
            Quando a limpeza acabou, veio o conserto hidráulico, pintura, persianas e troca dos moveis. A cozinha ganhou a linha branca toda nova, e uma bela  TV, a maior que encontrei no mercado, emoldurou um canto da sala de estar. O apartamento estava como eu queria. Não me importei em saber o que ele achava. Tomei gosto pela coisa. Mergulhei nos detalhes, chamei uma decoradora, e o resultado foi extraordinário. Quem não cabia mais ali era o tio Oto.

            Instalei-o numa clínica geriátrica e fui morar no apartamento. Não sem antes fazê-lo assinar um documento  passando o apartamento, carro e ações para o meu nome. Ele não objetou e me pediu que fosse visitá-lo aos domingos. Disse que ia e nunca fui. Pra quê?

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