O ÚLTIMO SUSPIRO
Apesar do dia ser ensolarado,
sua alma estava cinza. Sentado numa cadeira de balanço na clínica geriátrica ele
ouvia Samuel Barber, concerto para violino. A melodia evocava lembranças passadas. Ele se
emocionou, o choro caiu de mansinho, molhando suas faces encovadas e opacas.
Fez um esforço supremo para se lembrar de um passado que não queria recordar.
Namorava Elisa, uma morena
brejeira que era sua vizinha. Foram criados praticamente juntos num bairro
sossegado de Bangu. Não eram ricos, mas viviam bem, em suas casinhas suburbanas
com quintal e pequeno jardim, numa época em que a violência não se fazia
presente.
Elisa era a irmã do meio, de
uma família de três, cujo irmão mais velho era amigo dele. Graciosa, gostava de
balé e a professora via muito futuro para a menina. Seu corpo esbelto e
perfeito se adequava as piruetas, arabesques e pas de chat que eram executados com maestria. Dançar era a sua
paixão.
Rodolfo tinha como ambição
primeira ter um emprego público que lhe permitisse se casar com Elisa, ter dois
filhos, e ser muito feliz.
Cresceram, sempre juntos, ela
se aprimorando na dança, seu corpo se lapidando a cada ano aos exercícios
diários e repetitivos. Ganhou o primeiro concurso, o segundo, e sem nunca ter
se desviado da meta de ser bailarina, balançou quando Rodolfo pediu-a em
noivado. Sabia que o casamento com ele lhe afastaria da dança, de se
profissionalizar, de viajar, de integrar qualquer companhia estrangeira. Ela já
tinha recebido convites e recusou por não se sentir segura em deixar o pais.
Isto significava também deixar Rodolfo.
Rodolfo era um cara legal.
Limitado, sem grandes ambições, tinha muito orgulho de ver Elisa dançar e acompanhava
entusiasticamente sua trajetória sempre se admirando como ela conseguia fazer
aquelas coisas nas pontas dos pés e não cair. Orgulhava-se do seu talento mas, no fundo achava que ser bailarina não
iria ajudar nas despesas da casa.
Fez o concurso do Banco do
Brasil, passou e com esse trunfo na mão, achou que adiar o casamento seria
perda de tempo. Pediu à mão da namorada,
estava ávido para casar e pela chegada dos filhos.
Elisa assentiu ao pedido de
Rodolfo e deixaram a comemoração para depois de uma apresentação da Escola de
Dança do Municipal onde Elisa tinha um solo muito especial. Ela iria dançar o
Andante do concerto para violino de Samuel Barber.
A família toda, tanto dele
como dela, acomodados em frisa no belo Theatro, esperava pacientemente que o espetáculo
começasse.
Os primeiros acordes da peça
de Barber ecoaram, vibrantes, silêncio total. Elisa apareceu, diáfana, bela, esbelta, linda,
na ponta dos pés evoluindo graciosamente pelo palco. A moça sorria, totalmente levada pela música e
pelo seu imenso carisma. Era uma estrela e era óbvio que ocuparia um espaço
histórico na dança brasileira, se assim o quisesse. Rodolfo estufava de orgulho
enquanto os pais de sua noiva, choravam mansinho de emoção. Sucesso total. Nas
coxias, Elisa era saudada por todos, sua peformance foi magnífica, amantes da
dança faziam questão de cumprimenta-la. Sua melhor amiga, cochichou-lhe ao
ouvido: Sua carreira pode ser brilhante e
internacional, cuidado com este noivado e casamento. Em caso de dúvida carregue
o noivo e não prive o mundo deste imenso talento. Elisa sorriu do
comentário no justo momento em que Rodolfo vinha para lhe abraçar.
Rodolfo estava aflito para que
o casamento se realizasse logo. Havia sido promovido e o dinheiro era
suficiente para manter Elisa e os filhos que viriam.
Elisa amava Rodolfo
loucamente. Foi seu primeiro namorado, seu primeiro amor e não tinha dúvidas
que seriam felizes. Mas, e a dança? Como faria? Nos primeiros anos, continuou
dançando, veio um convite para o American Ballet Theatre. Recusou. Depois, um convite para um estágio
no Kirov, que também foi recusado. As apresentações do balé do Theatro eram
poucas, e se ela quisesse dançar mais, teria que formar um grupo. O que não
aconteceu, porque engravidou. Nasceu Aline, e dois anos depois nasceu Marcelo.
Abandonou a dança e dedicou-se a família, tal qual como queria Rodolfo.
Elisa formou-se em jornalismo
e escrevia sobre dança num jornal de grande circulação. Seu salário ajudava nas
despesas da casa. Por dever de profissão
assistia a todos os espetáculos de dança, porém a tristeza que sentia após os
espetáculos era absurda. Seu corpo formigava, o coração se apertava. Voltava
para casa sempre reflexiva. Largou a dança por que queria se casar com Rodolfo.
Foi escolha própria, ninguém a obrigou.
Mas, deveriam ter dito que esse tipo de compromisso em prazo de
validade. E o seu havia expirado. O
marido engordou muito, enquanto ela conservava seu corpo esbelto e gracioso.
Estavam acomodados um ao outro enquanto os filhos cresciam, e a relação deles
arrefecia. Não brigava, não conversavam muito. Também não faziam sexo. A
barriga estufada que ele vinha alimentando há anos conspirava contra qualquer
desejo que Elisa pudesse ter em desfrutar o corpo do marido. E ela tinha muitos
desejos.
A doença chegou muito rápido. Ela
viu o quisto na axila esquerda. Não foi ao médico. Deixou rolar. O quisto
mamário se desenvolveu numa rapidez estonteante. Ela se recusou a fazer
quimioterapia. No dia de sua morte, quis ouvir Barber, concerto para violino. Quando
a peça chegou ao fim, ela já tinha partido.
Rodolfo cumpriu luto de dois
anos e depois se casou novamente.
No final de sua vida, com a
morte de sua segunda mulher, os filhos casados, e ele vovô, e com dificuldades
para se locomover e uma demência avançando a cada dia, a família internou-o numa
clínica geriátrica, e era lá que sentado em sua cadeira ouvia Samuel Barber,
concerto para violino. Fechou os olhos e viu Elisa dançando seu solo, tão
linda, tão diáfana. Não se conteve. Abriu os olhos e se dirigiu em direção a
ela. Pegou-lhe a mão, e a enlaçou. Dançaram juntos, um pas-de-deux
inimaginável. Soube ali porque ela tinha
morrido tão precocemente. Seu câncer tinha sido de desgosto profundo por ter
abandonado a carreira, e não ter sido tão feliz no casamento. Sussurrou-lhe
desculpas, queria recomeçar. Abraçados, seguiram a luz até o infinito, ao som do
Andante do concerto de violino de Barber.
Belíssimo conto, Maria Alice. As emoções unidas pelos fios da sensibilidade formam lindos patchworks de vida. Parabéns.
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