UM OLHAR SOBRE O AMANHÃ

                       


    Ana Elisa e Jorge se conheciam desde crianças. Foram da mesma escola, moravam no mesmo bairro e aos dez anos de ambos Jorge pediu-lhe a mão em casamento. Ela assentiu e marcaram o casamento para dali a dez anos. Formaram-se em Pedagogia, casaram-se logo depois. Planos para o futuro tinham em excesso: formar uma família, três filhos, comprar a casa própria e ter a sua própria escola, pequena e com muita qualidade de ensino. Uma escola nos moldes de Oga Mitá, surgida no final dos anos 70, fruto de um projeto de jovens amigos que sonhavam uma escola fora dos moldes tradicionais. Inspiravam-se em Summerhill, na Inglaterra, considerada a escola mais democrática no mundo, onde se aprendia, sendo.

Cursavam o último ano de Pedagogia na Universidade Santa Úrsula, quando a professora falou com entusiasmo sobre a Escola Oga Mitá, na Rua Maxwell, em Vila Isabel. Dado o entusiasmo dos alunos, a visita foi marcada para o dia seguinte. 

Era uma casa simples, com um pátio pequeno e cômodos praticamente vazios. Chamou a atenção dos universitários a maneira inovativa de ensino. Não havia carteiras escolares ou mesmo quadro-negro. Professores e alunos, grupo de quatro a cinco no máximo, sentavam-se no chão, e a aula era dada. No pátio, outro professor, com crianças menores, ensinava as operações de somar e diminuir com gravetos. Ana Elisa chegou a chorar de emoção. Virou-se para Jorge e disse que queria ter uma escola assim. No auditório, um salão, um menino de uns 12 anos, no máximo, empunhando um microfone, debatia com os colegas algumas demandas que eles queriam amadurecer, para depois levarem à direção da escola. Os visitantes quedaram-se de boca aberta. Inovador, espetacular, foram os adjetivos usados.

Já em casa, Ana Elisa e Jorge traçaram o rumo de suas vidas. Tinham em foco trabalharem muito desde o início para que seus sonhos se realizassem. Sabiam que para terem a sua escola teriam que ralar bastante.  O sacrifício antes para depois ter a recompensa. Postergaram o aumento da família por cinco anos. Quando decidiram ter os filhos, já com a vida encaminhada, Ana Elisa se viu estéril. Num primeiro momento, a decepção e a tristeza foram enormes, mas Jorge foi tão companheiro, dizendo que por ele não tinha o menor problema com isso, que ela relaxasse. “Estamos juntos, isso é o que importa”.

Ao se aposentarem, decidiram que a virada era para valer. E nessa virada estava a mudança definitiva para outro lugar, que não mais a cidade em que nasceram. Estavam fartos do Rio de Janeiro. Escolheram Petrópolis por conhecerem e gostarem do município. Não foi difícil escolher um imóvel, onde pudessem morar e a escola funcionar. Finalmente os sonhos se realizando. Foi no Alto da Serra que encontraram a casa ideal. Era ampla e na horizontal. A casa precisava de ser mexida, e com alguma inventividade poderiam quebrar algumas paredes e aumentar o banheiro, e dar a ela a cara de uma escola de seus sonhos.

Reuniram os amigos para uma confraternização de despedida, os amigos tão entusiasmados quanto eles, quem sabe já visando fins de semana futuros, numa casinha na Serra.

A mudança se deu num dia chuvoso. O caminhão chegaria às 8 horas, mas os dois, muito excitados e ansiosos, às 5 horas já estavam de pé. Os carregadores não tiveram muito trabalho porque tudo estava embalado. Colocaram as caixas no caminhão, Jorge virou a chave na fechadura e partiram para uma nova vida.

Não foi uma mudança fácil. Desfazer-se de uma rotina numa cidade na qual cresceram e que sempre foi referência, foi muito difícil. O que pesou e muito, foi a violência que se instalou na cidade. Veio devagar, Ana Elisa lembra bem dos pivetes atacando as pessoas para roubar joias, cordão, anéis, pulseiras, e como não houve repressão – menor não podia ser preso, ou se preso fosse, logo seria solto -, a tensão foi aumentando. Subiam também pelas laterais dos ônibus, se agarravam nas janelas, e arrancavam colares, brincos das passageiras que se sentavam próximas a elas. Havia ainda roubos de bicicletas, carros, enfim, a insegurança aumentando escandalosamente. A imprensa noticiava e as autoridades pouco faziam. Os carros de passeio passaram a trafegar com os vidros fechados, ninguém parava em sinal de trânsito e com a chegada do celular, o quadro ficou lúgubre. Matavam para roubá-lo. O Rio ficou feio, muito feio. Até que numa noite em que voltavam do teatro, um carro fechou o deles, foram retirados de dentro do veículo a tapas, Jorge foi jogado ao chão, imobilizado enquanto um dos bandidos ameaçava estuprar Ana Elisa. Foram salvos por uma patrulha, que, por acaso, passava por ali. Houve trocas de tiro, e o casal com medo de morrer de bala perdida, pelos bandidos, ou pela própria polícia, fechou os olhos e esperou pelo pior. Os dois só abriram os olhos quando um policial informou que os meliantes estavam presos dentro da viatura policial,  e que eles podiam ir para a casa, porém no dia seguinte deveriam comparecer à delegacia para prestar queixa formalmente. Saíram dessa experiência muito machucados psicologicamente. Não imaginavam o terror que é ficar exposto aos humores de bandidos. Urinados e ainda com muito medo, Ana Elisa e Jorge deram-se as mãos e conseguiram entrar no carro para voltarem para casa. Seus corações batiam aceleradamente, e naquele momento de infinita fragilidade, uma certeza: mudarem-se, deixar o Rio para trás para aproveitar suas aposentadorias num lugar aprazível e com qualidade de vida. 

Enquanto no Rio chovia, na Serra o sol brilhava, sem o calor abrasivo ao qual estavam acostumados. 

As caixas ordenadas por conteúdo facilitaram a arrumação. Nas caixas de “cozinha”, tudo embalado: pratos, talheres, panelas, etc.  Isso se deve a Ana Elisa, uma pessoa muito sistemática. Suas gavetas de lingerie eram ordenadas por cor, as roupas por estação do ano, embora no Rio só haja uma estação, mas ela era assim. Um refresco para Jorge, um tanto desarrumado.

Em um dia a casa estava de pé. O imóvel era localizado no Alto da Serra, e nos fundos do jardim, tinha uma pequena cachoeira que desaguava num lago pequeno. Os móveis adquiriam frescor renovado num ambiente maior e arejado. Decidiram que morariam na parte detrás da casa e deixariam a parte da frente para a escola.

No dia seguinte à chegada, um filhote canino foi deixado na porta da casa. Um mimo dos vizinhos. Jorge quis demonstrar irritação por não ter sido consultado, mas Ana Elisa ficou tão entusiasmada que Jorge logo entregou os pontos. O cãozinho era branco com um desenho de uma lua entre os olhos. Recebeu o nome de Luar. 

Aos poucos foram tomando conhecimento do entorno. Foram à Prefeitura para conseguir a licença para a escola, fizeram panfletos com a diretriz do ensino e se prepararam porque sabiam que não é de um dia para o outro que as coisas acontecem. O primeiro semestre passou devagar, alguns alunos chegaram, gostaram, os pais ficaram entusiasmados, e no segundo semestre a Nova Escola, como eles a designaram, deslanchou.

          Adaptaram-se muito bem em Petrópolis, uma cidade que conheciam, pelas inúmeras viagens de fins de semana. Apreciavam o chocolate do D’Angelo, os caramelos da Patrone e da Katz. Gostavam muito do clima, o friozinho pela manhã, o fog, e a calma e segurança que a cidade oferecia. 

        A Nova Escola, em pouco tempo, se tornou referência. As crianças aprendiam de forma lúdica, poucas reclamações. As reuniões escolares com alunos e pais também foram determinantes para se cortar o que estava demasiado, e trazer inovações. Professores faziam estágio na Escola ao mesmo tempo em que surgiu o convite para eles ensinarem na Universidade de Petrópolis, na cadeira de Pedagogia. Ana Elisa se mostrou mais entusiasmada do que o marido com a ideia de lecionar na universidade e ele preferiu apoiá-la. Achava que difundir as ideias da Nova Escola seria ótimo para as escolas do município. Não que elas fossem adotar o método por inteiro, mas um cantinho já seria o suficiente. A sementinha estaria plantada.


A chuva cai implacável. Desde o desabamento do Morro da Oficina o índice pluviométrico na região está altíssimo. O centro de Petrópolis sempre inundou, o rio transborda, e o lixo acumulado de forma indevida boia indecentemente. Ela se lembra da tragédia no Cuiabá, uma perversidade que presenciou. Estava lá com Jorge visitando um casal de amigos quando a tragédia se deu. Viu coisas impensáveis, um cavalo morto levado pela turbulência do rio, um carro com seus ocupantes deslizando rio abaixo, um menino agarrado a um galho de árvore e as pessoas impotentes querendo resgatá-lo, sem saber como. Como não podiam, usavam a voz para ajudar. O menino agarrado a um galho de árvore se salvou graças aos gritos de incentivo para não esmorecer. Ele gritava, “não sei nadar, não sei nadar”, e o coro respondia, “se mantenha firme, vamos ajudar”. E a muito custo tiraram-no de dentro da água. O menino, uns treze anos mais ou menos, saiu ileso, mas sob forte impacto emocional. O Vale ficou em ruínas, mas anos depois os moradores reconstruíram suas casas nos mesmos locais, o que não deveriam, pois continuavam a ser áreas de risco.


Se havia um senão nessa mudança do casal, isso se referia às chuvas. Ao se mudarem, adoravam ver a chuva cair e o friozinho que chegava com ela. Ana Elisa se sentava no chão da varanda, com Luar ao lado, que detestava chuva, e ficava quieta, apenas observando. Jorge, ao contrário, se mostrava apreensivo e dizia. “A cada ano a chuva piora. Não era assim quando chegamos.” E ele tinha razão. Motivos o planeta tinha de sobra, e como eram pessoas informadas, o medo começou a tomar vulto. Mas, mesmo assim, estavam contentes.

Um dia, Jorge saiu de casa, cedo. Precisava resolver algumas pendências bancárias. Olhou para o céu, de um azul brigadeiro, deu um beijo em Ana Elisa e desceu a pé para o centro. Horas depois, a chuva veio forte. Uma barbaridade, descendo morro abaixo e inundando as vias públicas. Ana Elisa sentiu forte aperto no peito. Sentiu que a desgraça desta vez apontava para ela, direto no coração. Se agarrou com Luar e olhou as redes sociais. As notícias eram ruins, gente sendo levada pela enxurrada, ônibus caído dentro do rio, uma barbaridade, caos, a natureza explodindo e aniquilando, sem dó e piedade. Ana Elisa era ateia, porém naquele momento pediu ajuda, uma ajuda canhestra para um deus que ela não acreditava, mas só o fato de estar pedindo, já lhe acalmou o espírito. Todavia, o pressentimento ruim em relação a Jorge, persistia. Foi um dia longo, ele não dava notícias, o noticiário a cada minuto tornava-se mais desolador.

              Havia apenas cinco anos em que estavam na região, quando Jorge morreu. Corria para se proteger da chuva, quando a tempestade desabou violentamente, e ele foi tragado pela enxurrada. Engrossou a lista dos desaparecidos. Seu corpo, como de muitos, nunca foi encontrado. 

                 

Naquele dia em particular, a chuva caiu num de repente que assustou lojistas e passantes na Rua do Imperador. As aves silenciaram e o silêncio dos humanos foi o prenúncio do que viria logo após. O dia virou noite, a energia colapsou e o que se viu foi outro cenário dantesco, pior do que a tragédia no Cuiabá. Pessoas sendo arrastadas por uma chuva impiedosa, umas por cima das outras, lojas invadidas por lama e sujeira, carros batendo uns nos outros. Jorge pressentiu o perigo, teve medo, e viu claramente que o destino dele seria desaguar no rio. O frio na boca do estômago, sua vida passando na frente de seus olhos, soube que dessa não escapava. Aflito, desorientado, elevou seu pensamento para Ana Elisa. Não queria morrer, não estava preparado, foi o que pensou. Mas, ninguém está.  


                 Não era para ser assim. Programaram suas vidas para ficarem juntos até o fim. O baque emocional foi demasiado para Ana Elisa. Sem Jorge, de que adiantaria viver. Deixava-se ficar sentada na varanda de sua casa, a Nova Escola vazia, e o fiel Luar ao lado. O cão também abatido, procurava pela casa por alguma coisa que ele não sabia o que era, embora a presença de Ana Elisa o confortasse de alguma maneira.

                  Olhando através da janela, Ana Elisa são conseguia ver o amanhã, sua vida lhe tinha sido roubada. O passado estava longe e o presente não apresentava perspectivas. Sozinha, não conseguiria sobreviver. A vida ficou sem sentido. 

                  Tanta tristeza, o corpo entendeu. Um dia, não precisou mais abrir os olhos.






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