VELHICE

Um dia acordou cinza. Levantou-se, abriu a janela e olhou para o céu. Tão azul. Por que se sentia tão mal? Um vazio enorme, como se houvesse perdido alguma coisa irrecuperável. Medrou. Vinha sentindo essa sensação há algum tempo. Não queria pensar. Não queria enfrentar, tinha medo do confronto, mas no fundo, sabia. Havia parado de sonhar, e quando se para de sonhar, o fim está próximo. Levou algumas semanas irritado e de mau-humor, desfechando grosserias a quem lhe dirigisse a palavra. Não podia precisar quando o processo começou. É aos poucos, uma voz sussurrou-lhe ao ouvido. A limitação dos movimentos, a dificuldade do tato, a perda do paladar, a perda do sono foram transformações sutis ao longo dos anos, aos quais não prestou muita atenção, e quando se acentuaram o perturbaram sobremaneira. Ficou arrasado quando não conseguiu se levantar do sofá com a desenvoltura, digamos, de um ano atrás, como ficou difícil levantar e sentar, lembrava-se com amargura de quando se soltava no sofá com os pés balançando para cima. Jamais lhe passou pela cabeça que um dia demoraria pelo menos cinco minutos para se erguer e sair do sofá, da cadeira, enfim de qualquer coisa que tivesse assento. Cruel. Ora, devo me alegrar, pensava tentando injetar otimismo em suas veias grossas, mesmo lento ainda posso me sentar e levantar. Mas, previu o dia em que isso poderia não mais acontecer. Medrou mais ainda. Não estamos preparados para envelhecer. Deveria haver um prazo de vida monitorado. Cada um seria responsável pelo seu término. Quando ficasse inviável, pressionaríamos o botãozinho e pronto, nada de esperar a ordem divina. Deus anda tão ocupado hoje em dia. Não se lastimava pelos cantos, mas a raiva saía ferina. Tinha ódio das risadas jovens que ouvia de sua varanda. Atrapalhavam a sua leitura. De que riem tanto esses babacas? A vontade era de esbofeteá-los na cara, deixar marcado no rosto a sua impossibilidade, a sua decrepitude, a sua infelicidade. Os gritos das crianças, as conversas dos vizinhos, tudo isso lhe era exasperante. Queria silêncio total, absoluto. No silêncio de sua vida sem sonhos sentia saudades dilacerantes de seu corpo jovem, da fome após os exercícios físicos e do sono reparador depois de um dia extenuante. Agora, apenas lembranças. Sua invisibilidade o humilhava. Fora-se os tempos onde olhares o cobiçavam e o escutavam. Tornara-se parte da decoração urbana, o velho da bengala que mora sozinho num apartamento tão grande. Pra quê tão grande? Desperdício, não tem herdeiros, vai deixar pra quem? Tem uma vizinha que é doida pra casar com ele. Tem olho na herança. Essa gente não presta. Mas o pior era o anoitecer, os medos ocupando as poltronas da sala e o encarando. Ele desviava o olhar e ligava a televisão. Por algumas horas vivia o enredo das novelas e depois passava para os filmes da tevê a cabo. Driblava os medos, as angústias, o desconhecido tão próximo, mas inexpugnável aos simples mortais Às vezes os olhos não viam nada, ficavam grudados na tela, sempre à espreita de algum incômodo, de algum mal-estar. Se eu passar mal, quem vai me levar ao hospital? E cambaleando ia para a cama, na verdade o último lugar que gostaria de ir. Dormir é morrer até o despertar. Quem foi que falou isso? Concordava, era mesmo. A respiração ofegante alimentava o medo. Virava de um lado para o outro pensando, é agora, quem sabe morro enquanto durmo? O cansaço o vencia. Acordava surpreso, consegui. E renascia. Sua vida na gangorra, durante o dia lá em cima, durante a noite lá embaixo. Só se surpreendeu no dia em que se foi, sentiu um desfalecer, tal qual uma folha que cai de uma árvore, foi diminuindo-se por sobre as pernas, devagar, em câmera lenta, uma vontade de dormir fora de hora, aconchegou-se no chão frio da cozinha e olhou o relógio: Onze horas. Quando o encontraram tinha um sorriso congelado na boca meio aberta.

Comentários

  1. sutil e fatal. na chegada a morte, consegue manter o suspense, os pensamentos, onde se refletem a emoção.

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  2. Bela descrição sobre o envelhecer e o morrer.

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