DE VOLTA À VIDA

                               
                 

              Os sapatos ficam alinhados perto da porta. São os que usa no dia-a-dia: par de tênis, um tanto surrados, um par de sandálias com a sola bem gasta e um par de botas de borracha para os dias de chuva, quando as pedras que circundam a casa se tornam pequenas poças de água.  Na mesinha de canto, perto do sofá em L, descansa Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez que morrera naquele dia. Relê o livro que a impressionou na sua juventude, e que continua surpreendendo-a. A televisão noticia sua morte o tempo todo, com inúmeras reportagens e depoimentos. Naquele momento, parte dela morre também. Como no seu livro:  Crônica de uma Morte Anunciada, a morte dele também já se anunciara, há algum tempo.
            O dia amanhece nublado, o fog bonito de se ver, cobre os picos da montanha. Ela acorda cedo, e debruçada na varanda se deslumbra com o cenário majestoso. Mas, urge que ponha ordem na casa. Um casal de amigos chega para o almoço.
            Liga a televisão, e é então, que se inteira da morte de Gabo. Pode ela também chamá-lo assim? Decide que sim, tanto tempo convivendo com ele, se considera íntima. Levada por sua tristeza, a morte causa sempre uma estranheza, sabe-se que estamos todos na fila do aguardo. Abre a porta e sai para o jardim de sua casa, tão bem cuidado, tão cheio de flores e que lhe dá um baita trabalho. Abre os braços, e se sente morta por um instante. Levita levada por suas lembranças e passeia por lugares esquecidos, revendo pessoas que ela considerava esquecidas, porém absurdamente presentes naquele momento.
            É aquilo um grito de desespero? Um pedido desesperado de ajuda? O som é tão alto que ela se desequilibra, cai estatelada na grama e volta à vida graças aos latidos e um empurrão de seu cachorro. Ele, em cima dela, feliz por ter realizado sua proeza, dá-lhe focinhadas e lambe seu rosto encharcado de lágrimas.
            Voltam juntos para casa,  dá-lhe ração e aproveita para comer, seu estômago clamava por um pão quentinho coberto de manteiga e um café com leite fumegante.  A Gabo.


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