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VELHICE

Um dia acordou cinza. Levantou-se, abriu a janela e olhou para o céu. Tão azul. Por que se sentia tão mal? Um vazio enorme, como se houvesse perdido alguma coisa irrecuperável. Medrou. Vinha sentindo essa sensação há algum tempo. Não queria pensar. Não queria enfrentar, tinha medo do confronto, mas no fundo, sabia. Havia parado de sonhar, e quando se para de sonhar, o fim está próximo. Levou algumas semanas irritado e de mau-humor, desfechando grosserias a quem lhe dirigisse a palavra. Não podia precisar quando o processo começou. É aos poucos, uma voz sussurrou-lhe ao ouvido. A limitação dos movimentos, a dificuldade do tato, a perda do paladar, a perda do sono foram transformações sutis ao longo dos anos, aos quais não prestou muita atenção, e quando se acentuaram o perturbaram sobremaneira. Ficou arrasado quando não conseguiu se levantar do sofá com a desenvoltura, digamos, de um ano atrás, como ficou difícil levantar e sentar, lembrava-se com amargura de quando se soltava no sofá

VENDE-SE

Olhou o apartamento pela última vez. Despediu-se dele como um velho amigo. Afinal vinte anos não são vinte dias. Fez as mudanças aos poucos. Cada dia levava uma coisinha. Pedaços de si. Quando se deu conta já tinha levado tudo. Levou-se por inteiro. Não deixou vestígios. Agora já podia anunciar a venda.

VIROSE

A virose o pegou de surpresa. Começou já de manhã. Levantou-se a contragosto. A indisposição, o cansaço e a vontade de voltar para a cama e dormir era imensa. Mas não podia se dar ao luxo de jogar tudo para o alto e mergulhar nas cobertas. Seus cachorros o esperavam para a saída matinal. Arrastou-se até a cozinha, pegou as guias e foi se arrastando para a rua. Uma nuvem cinzenta pairava sobre sua cabeça. - Que droga é essa? Não estou nem resfriado - falou entre dentes tentando se equilibrar perante a força descomunal que os cachorros faziam, felizes de estarem na rua. Passou em revista tudo que tinha que fazer, naquele dia. O mais importante era o encontro na editora. O resto podia adiar. Iam publicar seu primeiro livro e a perspectiva lhe deixara muito feliz. Lembrou-se que mais feliz ficara quando escreveu seus primeiros contos e mostrou aos amigos. Todos gostaram. Então, podia escrever, o que sem dúvida, foi surpreendente, não se sabia capaz. Isso lhe deu novo ânimo, uma porta q

GOSTO NÃO SE DISCUTE

         - Garoto, não como mais! Todo mundo que estava na piscina do prédio ouviu Carla Regina, em alto e bom som. As mães dos adolescentes se entreolharam. Então, a fofoca envolvendo ela e Carlos Henrique era verdadeira. Se bem que Carlos Henrique não era propriamente um garoto, tinha 23 anos, estudava e trabalhava. E Carla Regina era um pouco mais velha do que ele- 25. Todavia, as mães sabiam que ela fazia o maior sucesso entre a garotada. Caio e César, gêmeos, disputavam quem seria o primeiro a receber beijinhos dela, e só tinham nove anos. Igor vivia falando das suas pernas e já tinham visto o pintinho de Luís Antônio subir quando num descuido na piscina, os seios dela pularam para fora do biquíni. E as mães zelosas de seus filhos logo se perguntaram: - Se ela não come mais garoto, vai comer quem? - Nossos maridos. - Nossas filhas. Foi um deus nos acuda. Sossegaram, quando ela tirou um chocolate belga da bolsa e proclamou. - O melhor chocolate do mundo. Agora só como esse.

B12

Não havia quem não gostasse da B12. Estranho nome, não é mesmo? Mas era esse mesmo. A moça adorava uma injeçãozinha B12. Pra levantar, ela dizia. Aliás, era fanática por qualquer pico. Viciada em tudo que desse barato, B12 vivia drogada. Morava no baixo Leblon, e todas as pessoas que frequentavam aquele pedaço a conheciam. Vez por outra se metia em situações embaraçosas, mas logo vinha a turma do deixa-disso, dava uma força e coisa e tal, enquanto outros fingiam que nada viam. Mas houve um dia em que me preocupei. Estava tomando um chocolate quente no Cafeína, quando ela parou defronte a uma mesa onde estava um rapaz sozinho e impôs sua presença com gestos obscenos e palavras de baixo calão. No auge de seu discurso desconexo, derrubou uma cadeira, perdeu o equilíbrio e foi ao chão. A saia minúscula que vestia, prendeu na cadeira e se rasgou inteira. B12 de calcinha e sutiã à mostra, ria às gargalhadas. Logo seu exército de amigos e simpatizantes se pôs em marcha para ajudá-la. Uma toal

O BANQUETE

Um mês antes de completar trinta anos, Fernanda andava agitada. Iniciaria uma nova década e tinha metas a cumprir: encontrar o parceiro para toda a vida, ter filhos e ser um sucesso na carreira profissional, o que é dito e sublinhado por várias celebridades sempre que têm algo novo a dizer. Deu de ombros e se concentrou nos preparativos. A lista de convidados era pequena. Pensou em reunir para o almoço, suas amigas mulheres, dez criaturas muito especiais que se conheciam desde os tempos de colégio, amizade antiga, dessas que não se vê mais por aí. Depois à noite, a celebração continuaria na Lapa, numa rodade de samba e cerveja. Quis fazer tudo sozinha. Deu-se ao luxo, apenas, de contratar um garçom para servir as bebidas e o almoço quando se sentassem à mesa. Ligou para o serviço de bufê e pediu o mulato mais bonito e competente da agência. No dia do aniversário, Fernanda acordou radiante. Antes do café-da-manhã, deu uma corrida de uma hora, chegou faminta, comeu e pôs às mãos à obra.

RASTROS DE SANGUE

inverno manhã de verão uma suave aragem convidava ao lazer cabelos ao vento e muita disposição eu caminhava leve como o dia azul num olhar distraído olho pro chão vejo pegadas de sangue começo de frio o vento mais forte tremo de medo passos e pegadas se confundem sem fim curvei-me ao peso da angústia e fui pensando cinza queria achar o cão ferido numa esquina o encontrei e o dia virou noite

SERVIÇO PÚBLICO

trabalho? não há o que fazer? invento agito as mãos faço cara de concentrada fecho os ouvidos nos corredores nas salas nos banheiros ruído, barulho, peidos, arrotos telefones tocando risadas obscenas conversas inúteis intermináveis visitas de amigos parentes camelôs a casa-da-mãe-joana creche verdadeira feira popular hienas vestidas travestidas de gente mostram os dentes tudo em ondas, nervosas, gulosas engolindo o náufrago, inerte, semi-entorpecido barnabé embriagado sentado à mesa de trabalho finjidor órfão do serviço público retrato em preto & branco o tal sem padrinho que morrerá pagão esquecido na seção

NOITE DE NATAL

Menção honrosa no concurso nacional de poesia de 2006, realizado pela secretaria de cultura da prefeitura de Colatina, cuja antologia recebi há poucos dias. Fiquei anos sem saber que o meu poema havia sido premiado, e soube há dois anos por alguém que me deu os parabéns pela internet, até hoje não sei quem foi. A mesa posta para a ceia ela aguarda seus convidados Entram devagar os mortos daquela familia e tomam seus lugares Ela ergue a taça brinda ao encontro Sabendo que um dia nem memória, nem saudade restarão sobre os escombros

DONA ANGÉLICA

A diversão de dona Angélica é ficar na varanda de seu apartamento olhando o movimento da rua. Estranhou quando viu a papelaria do Fernando fechar mais cedo do que o de costume. A papelaria fica em frente à sua janela. Fernando, o dono, todas às vezes que chega, costuma lhe dar um adeusinho. Ela retribui a gentileza com mimos culinários. Todas as tardes, a empregada atravessa a rua com uma bandeja com café e bolo. E assim, solidificaram uma amizade à distância. Naquele dia algo acontecera. O relógio mostrava as 16 horas e a papelaria já estava fechada. Pegou o telefone e telefonou para lá. Ninguém respondeu. Ficou aflita. No dia seguinte, a manicure chegou pontualmente às 9 horas. Entrou e foi logo dizendo. - A senhora soube que a papelaria foi assaltada ontem? Um homem armado mobilizou o Fernando e a Cristina e roubou tudo. Até o pobre do Daniel (o faxineiro do prédio ao lado) foi feito refém. O bandido mandou o Fernando arriar um pouco a porta, depois amarrou os três, fez a festa

O PIRULITO

Sexualmente carente, teve calafrios de prazer ao ver aquela gorda monumental espremida numa legging e frente única, passar a língua, devagarzinho, no pirulito de framboesa, entrar no ônibus e se sentar ao seu lado. Ficou indócil. Não queria perder um segundo da ação. Começou a suar frio, enquanto seu membro inchava, a cada lambida dela. Ela, distraída, não dava pela aflição do rapaz, e toca de lamber o pirulito. O tormento do rapaz, ao invés de passar, prosseguia, mexia-se no assento, puxava a camiseta para baixo, fazia de tudo, mas não conseguia tirar os olhos do movimento labial da mulher. Com medo de passar vergonha, num gesto rápido, tirou o pirulito da boca da moça. - Perdeu, perdeu. E, feliz, com o pirulito na boca, seguiu viagem.