ELLA E SEU DESTINO

 

                                             

 

                Vi Ella nascer, crescer e se tornar mulher. Onírica por natureza gostava de cantar para as plantas, conversar com bichos e se energizar na pequena cachoeira que ficava atrás do jardim de sua casa. Apesar de ter completado o segundo grau, se recusava a cursar faculdade, perda de tempo, costumava dizer. Os pais se preocupavam, porque sabiam não ser eternos e essa maneira desprendida de sua filha não iria pagar as contas. Se ao menos Ella que cantava tão bem, se profissionalizasse e fosse cantar nos palcos da vida. Mas, a filha se recusava, queria seguir o fluxo natural de sua paixão.

            O circo chegou ao seu vilarejo, nos cafundós de Mato Grosso do Sul, num dia abafado de verão. Como era domingo, as pessoas estavam sentadas nas frentes de suas casas, abanando-se freneticamente. Ella sentada às margens do pequeno riacho oriundo da cachoeira, cantava para os peixes que porventura passassem por ali. Apesar do rebuliço que causou a entrada de grandes caminhões pelas ruas de seu bairro, não se deixou abalar e cantou mais alto para que o barulho pontual da rua não interferisse no seu momento.

            Ao entardecer, foi até onde o circo se instalara para a apresentação dali há dois dias. A faina era intensa, uma gente diversificada que ela nunca tinha visto antes: anões, mulheres obesas, homens de todos os tamanhos e formas, e meninas jovens como ela e poucas bem mais novas. Ficou curiosa em saber onde todos se encaixariam nas apresentações.

            Chegou em casa e pediu aos pais para que comprassem ingressos para o circo.

            A plateia cheia, luzes iluminavam o espaço, o espetáculo começou. Ella reconheceu os artistas, todos eles, dos gordos aos magros, das mulheres   às meninas malabaristas e trapezistas. Aplaudia com gosto. O apresentador fez suspense para anunciar com eloquência o domador de leões. Ella estremeceu quando o viu. O sujeito não tinha nada de mais, era magro, alto e com ares de latin lover. O inconsciente da menina deve ter interpretado aquele estremecimento de uma maneira muito individual, que só a ela fez sentido. Apaixonou-se.

            Quando o circo foi se embora da cidade, Ella foi também. Despediu-se apenas dos pais e saiu porta afora com mochila nas costas.

            Quando soubemos de sua partida, ficamos magoados, porque não havia no lugar quem não gostasse de criatura tão doce, e sua saída, sem se ter despedido, deixou-nos um gosto amargo de saudade. Quanto ao domador ninguém se lembrava muito dele, mas sim das feras, bonitas e imponentes.

            Anos passaram, ninguém mais soube de Ella. Ella também pouco se preocupou em saber dos amigos que deixou.

                A cidade cresceu, construíram um pequeno teatro, aberto como uma arena romana bem no centro da avenida principal. Eu passava pela obra todos os dias, porque era um ponto convergente numa cidadezinha onde todas as compras se faziam por lá. Quando a vi, conversando com o Manuelzinho, o mestre de obras, custei a acreditar nos meus olhos. Sim, era ela, muito magra, como se esses anos fora de nossa cidadezinha tivessem sugado a exuberância de seus seios fartos e das pernas grossas e bem torneadas. O que vi foi uma moça esquálida, que quando me viu, cobriu os seios e disse que os tinha mandado cortar porque eram muito grandes. Mostrou-me a cicatriz e quando meus olhos desceram pelo seu corpo percebi que sua barriga estava seca.  Lembrei-me que sua mãe, talvez por descuido, porque ninguém mais procurava saber sobre sua filha, disse que ia ser vovó. Então, cadê a barriga, me perguntei. E em voz alta repliquei. Ela me disse que tinha acabado de ter o bebê, mas não sabia se podia amamentar já que tinha operado os seios. Minha atenção foi desviada por ouvir pessoas falando muito alto e causando tumulto, justamente na obra do teatro, exigência da população, na esquina da rua onde conversava com Ella. Uma das pessoas que mais gesticulavam e gritavam era Cidinha, amiga dos tempos de colégio. Gritei por ela, e ela não me ouviu. Fiquei intrigada, e num flash me dei conta que ela não me respondia porque havia morrido. Estremeci, quanto acontecimento inusitado num dia onde meu propósito principal era apenas comprar queijo e pães. Continuei minha conversa com Ella e perguntei do marido. Está por aí. Alguém me avisa que minha mãe me esperava para irmos embora. Minha mãe? Estranhei, pois há nuto tempo saio sozinha de casa. Quando me virei, minha mãe estava junto de Ella, mas as duas não se viam. Eu fazia gestos para as duas, mas nada adiantava, parecia que havia um muro entre as duas. Espantada, me dei conta que esse encontro era surreal pois minha mãe não pertencia mais ao mundo dos vivos.

            Quanto ao bebê e marido de Ella devo confessar que nunca os conheci.

           

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