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Mostrando postagens de 2014

DIÁLOGO IMPROVÁVEL ENTRE UM HOMEM E UM SAPO

                O entardecer caía sobre o vale. Um frio delicioso entrava, como a pedir licença, pelo suéter fino do homem e o fazia estremecer levemente. Ele saiu de sua pequena casa para respirar o ar puro trazido pelo vento vindo da montanha. À sua volta seus cães corriam, prá lá e pra cá, felizes por estar na companhia de seu dono.             O homem percorria o jardim, que circundava o muro da casa. Gostava daquele pedaço florido, cenário único de diversos matizes: tirava as folhas secas das árvores, colhia o mato e examinava a terra atentamente à procura de formigas, os predadores de suas hortênsias e rosas. Quando viu o sapo, escondido entre as folhagens, olhou-o com olhos de conhecedor e o interpelou.             - Como pode ser tão feio e repugnante?             - Olha que você não fica atrás.             - Não lhe meto medo?             - Confesso que um pouco. Sua altura e largura são imensas, e sempre acho que vou ser esmagado por seus pés. Mas tenho vontade

DE VOLTA À VIDA

                                                                 Os sapatos ficam alinhados perto da porta. São os que usa no dia-a-dia: par de tênis, um tanto surrados, um par de sandálias com a sola bem gasta e um par de botas de borracha para os dias de chuva, quando as pedras que circundam a casa se tornam pequenas poças de água.  Na mesinha de canto, perto do sofá em L, descansa Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez que morrera naquele dia. Relê o livro que a impressionou na sua juventude, e que continua surpreendendo-a. A televisão noticia sua morte o tempo todo, com inúmeras reportagens e depoimentos. Naquele momento, parte dela morre também. Como no seu livro:  Crônica de uma Morte Anunciada, a morte dele também já se anunciara, há algum tempo.             O dia amanhece nublado, o fog bonito de se ver, cobre os picos da montanha. Ela acorda cedo, e debruçada na varanda se deslumbra com o cenário majestoso. Mas, urge que ponha ordem na casa. Um casal de amigos

ZUMBIDO

esse zumbido intermitente dilacera meus ouvidos antes tão sensíveis - é pra sempre me fizeram saber uma lágrima cai                    desavisada e ponteia o chão que acabei de lavar logo vem outra que cambaleante se equilibra furtiva no peito do meu pé - o que se há de fazer? Pensam outras lágrimas que caem tantas caíram que não me dei conta e esse zumbido que nunca vai terminar me fizeram saber e as lágrimas desabando silêncio nunca mais

A MORTE DA ATRIZ

                                                            Soube que a atriz tinha morrido um dia antes. Quando li o anúncio fúnebre tive a estranha sensação de que em breve iria também. Não é assim? Primeiro morrem os avós, depois os pais, quando começam a morrer os de nossa geração é o alerta: o próximo pode ser você. Abaixo do nome dela vinha a confirmação da profissão, talvez necessário para uma pessoa que não se destacou no meio. E quando eu morresse? O que me definiria? Sinceramente não sei.  Escritora? Incorreria na mesma problemática da defunta em questão: precisaria da qualificação numa profissão em que sou totalmente desconhecida.             Seu corpo violão e seu sorriso encantador fizeram muitos homens cativos. Foi uma boa amiga, até o momento em que não foi mais. A vida a machucou,  e no fim se tornou ranheta e amarga. Refugiava- se nas belas lembranças que ao passar do tempo tornaram-se borrões, nos quais ela mal distinguia seus personagens. Pelos trancos e pe

O JARDIM DAS FOLHAS SECAS

         Meu avô costumava me trazer aqui, todos os dias. Gostava de correr pelos  gramados verdes, pegar atalhos, me extasiar com a beleza das flores, subir  nas árvores e descansar em seus galhos acolhedores. O parque era muito bonito, com um grande lago circular, onde alimentávamos os patos e peixes e brincávamos com nossos barcos à vela.       Foi num domingo, que, junto a outras crianças, tivemos a nossa primeira aula de jardinagem. Dois jardineiros profissionais nos ensinaram a adubar o solo, a mexer na terra e com a ajuda deles plantamos sementes de flores, eu escolhi rosas, porque minha mãe se chamava Rosa e amava rosas vermelhas, as suas preferidas. Éramos quatro meninos e seis meninas, irrequietos e animados e cada um ficou responsável pelas sementes que plantou o que significava estar atento ao crescimento das flores, adubando e regando quando fossemos ao parque. Levamos uma manhã inteira trabalhando, felizes, totalmente lambuzados de terra e ao final batizamos esse loc

FIQUE DE OLHO: EU LEIO VOCÊ

CAMINHOS OPOSTOS

            E lá estava eu, caminhando ao leu no meu jardim, admirando a beleza ao redor e sentindo a fresca brisa do entardecer no meu corpo.  Revigorada e em paz comigo mesma olhei para o céu. Um avião passava deixando um rastro atrás dele como se fosse um cometa. E não são cometas essas máquinas aladas singrando os céus? Não sei o que me deu na cabeça, mas acenei  em direção ao infinito, feliz em compartilhar o gesto que fazia jus à emoção que sentia no momento. O avião se foi e eu entrei em casa.

NA FARMÁCIA

            Espalhado pelo balcão da farmácia vários cosméticos de primeira linha – caríssimos como quase tudo no seu país. Ela comparava preços e nisso ele entrou.             A aparência não podia ser pior: cabelo ralo e desgrenhado, sujo e ainda por cima desdentado. Ah, é demais, nem merece ser olhado, ela pensou de imediato. Ele fez um comentário  sobre a camada de ozônio. Tentando ser educada, apenas meneou a cabeça, embora a única palavra que entendeu fosse ozônio. Pra que se preocupar? O homem era um lixo. Nem se deu conta do preconceito que aflorava logo ela que não discriminava nada.             Ela custou a se decidir, tantos eram os produtos. Ele pediu um medicamento que a atendente foi buscar. Vendo a indecisão da mulher, que continuava olhando os cosméticos, disse que ele nunca usara nada na pele. A resposta foi tão rápida e tão inesperada que houve um silêncio mortal durante alguns segundos. Saiu da boca dela: Nota-se.             O homem pegou o medicamento e

THE BRAZILIANIST

            Ela o via todos os dias na estante. O autor era um brazilianist famoso, sempre muito requisitado para opinar sobre o país. Ela lia as entrevistas, e fantasiava com ele: será bonito, casado? Tempos idos, sem internet, não havia como saber. Sim, havia a foto dele na orelha do livro. Sem photohsop mostrava um homem claro, de óculos, nada de mais.             O susto foi grande quando o viu adentrar na biblioteca onde trabalhava. Ele se apresentou, esticou-lhe a mão que ela apertou com o coração na boca, ele sorriu educado e foi ler alguns jornais. O homem era feio, feio não,  horroroso, mas ela relevou, era um sujeito importante, um nome respeitado e seus livros faziam parte do acerco da biblioteca.             Por esses mistérios da vida, sem haver paquera, olhares cruzados ou suspiros de tesão, ele esperou-a sair, convidou-a para um café e horas mais tarde estavam fazendo um sexo morno na cama dela. Assim  mesmo, extremamente pragmático, tipo sobremesa. Ela não se e

ENTRANHAS

juiz implacável de mim mesmo medio a luta de dois tigres ferozes travando guerra dentro de mim machucam-se e urram de dor não me rendo aos caprichos dos felinos deles sugo a força me alimento da garra cuido das feridas me fortaleço e dou fim a batalha.

GRIPE

                        Acordei com a garganta doendo, o nariz entupido e já sabia que a gripe galopava ao meu encontro. Tentei desviá-la com remédios e pastilhas, mas ela veio avassaladora, derrubando obstáculos e vencendo meu corpo debilitado. Pus-me na cama, de molho, dormindo a maior parte do tempo e lendo nos intervalos, mas sem muito sucesso.  Estirado na cama olhava o relógio e pensava no que faziam meus amigos e eu mesmo, se não estivesse ali, imóvel. Essa atemporalidade sempre me assustou principalmente se estava dentro de um avião.  Olhando para o infinito azul, com as nuvens dançando na minha frente, me lembrava dos que ficaram em terra, mergulhados nos seus afazeres. Pensava: a essa hora Irma escova os dentes, Roberto se prepara para o colégio e com certeza minha mãe está ao telefone. A vida não para. É exasperante constatar que somos plenamente substituídos. Bem, temos alma, e isso conta, e muito, principalmente se você for desses que acredita em reencarnação. Mas

TIGRÃO

A turma da academia de ginástica era muito legal. Malhavam sempre no mesmo horário, e, com isso, a convivência foi se estreitando, se solidificando e ficaram, todos, muito amigos.             Quando Marinalva, louraça, sarada, boa de bunda, começou a frequentar a academia naquele horário particular, a confusão se instalou. As mulheres mais velhas se sentiram enciumadas e ameaçadas pelo corpo escultural da moça e os homens, então, enlouqueceram em cadeia, fazendo fila na sala de musculação, levantando e arriando pesos empenhadíssimos em exibir os dotes físicos desenvolvidos para a beldade recém-chegada. O horário, antes calmo, ficou abarrotado, e um professor, em especial, querendo impressionar a loura, mandou tatuar um tigre Dente de Sabre na lateral esquerda do trono. Assim que a tatuagem ficou pronta, o professor criou coragem, e marchou para a sala de pesos livre, envergando um short vermelho e uma camiseta tipo regata, bem justa ao corpo. Nós, que estávamos num papo sem fi

RASTROS DE SANGUE

inverno manhã de verão uma suave aragem convidava ao lazer cabelos ao vento e muita disposição eu caminhava leve como o dia azul num olhar distraído olho pro chão vejo pegadas        de sangue começo de frio o vento mais forte tremo de medo passos e pegadas se confundem sem  fim curvei-me ao peso da angústia e fui pensando cinza queria achar o cão ferido numa esquina o encontrei e o dia virou noite

PEDRO, O SAPO

            Ele me olhou, eu o olhei e gritei. Sai, sai, e peguei a vassoura. Ele continuou me olhando, em guarda, ambos assustados um com o outro. Consegui varrê-lo para fora da casa. Com cuidado, porque tenho respeito por qualquer ser da terra, racional ou irracional, com penas, sem penas, com patas ou com pernas. Ele se cagou de medo e pequenas fezes sujaram o chão. Gritei de nojo, entendi o seu pavor, porque também eu não estava no meu normal, mas limpei tudo e fechei a porta. Não o vi por alguns dias, mas eis que num domingo ensolarado, lá estava ele no centro da sala, relaxado em cima do tapete, assuntando em volta. Dessa vez nem me assustei. Enxotei-o mais uma vez, e ele saiu saltando de um jeito engraçado pela porta. São feios os sapos. Outra feita se postou na porta me olhando fixamente. Os cachorros o ignoravam solenemente e eu passei a não me incomodar com a sua presença. Estabelecemos um elo de intimidade e comecei a chamá-lo de Pedro. Ele passou a ser presença constante n

INVENTÁRIO

pelas cicatrizes e marcas de meu corpo traço a minha estória criança traquina joelhos arrebentados pernas estropiadas as marcas estão todas aqui desfiguradas esmaecidas pelo tempo olho com respeito este inventário de cicatrizes estória daquela criança sempre com alguma coisa a sangrar a gozar a doer hoje são as cicatrizes da alma a estória dessa mulher doloridas e sangrentas farpas da alma coração esfaqueado que ainda teima em bater

O BANHO

                                                                O dia estava quente e enquanto seu filho Pedro e o amigo Bruno brincavam na sala, Cristina foi para o banheiro tomar uma ducha para se refrescar. Distraída, deixava a água descer pela cabeça, olhos fechados, quando a porta do boxe se abriu e entraram os dois meninos para tomar banho com ela. Levou um baita susto e ficou na dúvida se mandava os meninos saírem ou se agia como se nada houvesse. Era uma mãe moderna que tomava banho com o filho, mas ali estava um amigo, como deveria proceder? Será que na casa dele a mãe também tomava banho com o filho? Não era uma boa hora para perguntar e, aflita, mas sem dar a perceber, disse que o banho dela tinha terminado, mas que eles poderiam tomar o deles. Enrolou-se na toalha e saiu de fininho. Foi para a cozinha, preparou uma dose de uísque, e, sentou-se no sofá. Os meninos demoraram uma eternidade para sair do banheiro. Tudo passou pela cabeça dela, coisas safadas que meninos e m

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HISTÓRINHA QUASE REAL

                                              Lembro-me bem dela. Cabelos escuros, lisos, bem curtinhos, imensos olhos negros e pestanudos, nariz bem delineado, boca carnuda e dentes brancos, lindos. Corpo escultural encimado por um pescoço longo, seios redondos, como dizia um amigo dela, apaixonado: no tamanho certo para caber na minha mão. Enfim, a menina era um espetáculo. Os homens a cobiçavam e as amigas a invejavam. Chamavam-na de Beth, a caçadora. E para tentar descobrir algum defeito, falavam das pernas, finas e nada glamorosas. Um detalhe, convenhamos.                  Morava na Penha, sua família era bem humilde, numa casinha modesta, e ela tinha jurado que aquela vida não era a que queria para si. A mãe era costureira e o pai vivia desempregado. Tinha uma irmã, as duas se detestavam, viviam às turras e competiam pelo amor da mãe, totalmente voltado para Beth. No entanto, as amigas das duas irmães eram praticamente as mesmas.                 Elas eram muito parecida

VÉSPERA DE NATAL

                                       Depois de longos meses de chuva quase que contínua, o tempo deu uma trégua. Ainda chovia na véspera de Natal, os acidentes nas estradas se sucediam, cidades amanheciam alagadas, aqui e no mundo e Euclides se perguntava quantas cidades teriam possibilidades de sobreviver após tantas catástrofes. Não queria ser testemunha ocular daquilo que o amedrontava tanto: o  fim de cidades devastadas pela água. Que morresse antes.             Era um excêntrico, não gostava de festas, não dava muita importância às datas, como essa – Natal-  por exemplo, mas celebrava o seu aniversário com uma alegria genuína. Por anos a fio passava a data sozinho, feliz desde a hora em que acordava até quando ia dormir. Preparava o café da manhã com todas as gostosuras que gostava; encomendava o seu prato predileto no restaurante mais sofisticado do bairro, e que viesse acompanhado de um bom tinto francês, e sempre ganhava a sobremesa de brinde. Não convidava ninguém, mu